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quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Braços de gelo

Era terça-feira, aparentemente mais um dia como outro qualquer. Despertador cinco horas para levantar às cinco e trinta – só para ter o falso sabor de poder ter uma segunda cochilada antes de fazer a barba e escovar os dentes. Mais um dia de trabalho, mais um dia de treinos físicos intensos, exaustivos o suficiente para esvaziar a mente por alguns minutos. Quando me dou conta, já se passa das onze e penso no que deixei de fazer, no que deveria ter feito e no que preciso fazer no dia seguinte.
Ela então, entra sem bater, me dá um beijo no pescoço e me espera na cama enquanto faço as coisas de sempre, como fazer um bolo de banana sem farinha com aquelas coisas de gente que malha, ou então lavando a louça que os companheiros de república nunca lavam. De nada adianta se trancar a porta quando ela já tem a chave, nenhum telefonema, nenhum aviso prévio, nada, nada. 
Sento na cama, pego meu copo de whisky em forma de caveira e coloco uma dose das três garrafas que eu tenho só na cabeceira. Às vezes, olhando rápido as garrafas, o quadro com rolhas de vinho na parede, as garrafas de cerveja na cabeceira, também, penso que talvez esteja bebendo muito, mas é bobagem. Acendo a luminária que eu mesmo fiz, com uma lata de Jack Daniel`s, e mergulho no pano que cobre a parede preto e branco florido, desbotado, rasgado em alguns lugares, coberto de poeira, para esconder as marcas de infiltração do quarto subterrâneo que mais se assemelha a um porão sem janelas.
Ela me abraça como quem sente saudades, já não bastasse dormir comigo todos os dias. Pergunta se eu senti sua falta – eu ignoro e continuo olhando o preto e branco florido, tentando encontrar algo que ainda não sei o que é. A garrafa vai esvaziando lentamente, e ela começa a pedir por atenção. Reclama por eu não desfazer a cama por completo para dormir e insistir em dormir só em uma metade. Como se eu desse a mínima para o que ela quer.
A respiração começa a ficar forte, e o cheiro amadeirado a ficar em evidência. Coloco mais uma dose só para não dar ouvidos ao que ela não para de falar para mim. Ela então percebe, finalmente, que eu não estou dando atenção. Toca seus lábios nos meus, um sabor de mel amargo com um leve toque de falta de ar. Deito em seu colo e me faz um cafuné, diz que vai ficar tudo bem, que ela está comigo e que não tenho o que temer. Escrevo minha poesia nas curvas de seu corpo, impalpável. Não conheço seu rosto, mas conheço seu perfume de lágrimas. Como é doce o sabor da sua ausência. Lentamente e sem perceber, adormeço na cama, ainda arrumada, com a luminária acesa e o copo na mão, em seus braços.